segunda-feira, 20 de março de 2017

Um Cachorro No Fim Do Mundo

Personagem Mr. Peanutbutter do desenho animado "BoJack Horseman"


       Achei que era uma brincadeira. Em minha defesa, todos acharam. Foi preciso que um senhor de cabelos grisalhos, trajando um terno, confirmasse. "Um meteoro cairá no Brasil", disse ele sem rir. Descobri em seguida que o ponto de impacto seria no interior de meu estado. "O raio de destruição previsto é de 100 km", declarou o senhor antes de anunciar os finalistas da Copa do Brasil. Logo após os comerciais, fiquei sabendo que o alvo principal era a minha cidade.
            
       A primeira coisa a fazer seria verificar o seguro. Infelizmente, o meu contrato de aluguel não cobria tragédias de origem espacial. A segunda medida foi arrumar as malas. De acordo com o noticiário, eu tinha 20 horas para fugir. Empacotei meus pertences com uma velocidade assustadora. Levei minhas panelas, um saco de laranjas, um pacote de arroz e uma lata de ração canina. Retirei todas as roupas do cabide e os tênis da sapateira. Carreguei a TV de plasma e o computador. Consegui encher o porta-malas e o banco de trás de meu carro. Na frente iam o meu cachorro e eu.
            
        Steve era um labrador amarelo enorme que ficou bastante feliz quando o coloquei no banco do passageiro. O pobre animal imaginava um empolgante passeio. Ele estava certo. O problema era que nós nunca iríamos voltar.
           
       Enquanto atravessava a rua onde morava, analisei cada pedra, buraco, árvore e irrelevante imperfeição. Eu queria memorizar aquela atmosfera impossível de ser captada por qualquer câmera. A rua que ficava sombria nos dias de escritório e acolhedora nos fins de semana. A rua em que imaginei morrer, mas que morreria antes mim.
            
      Não demorou e eu compus a ponta de um grande congestionamento. Todos tiveram a brilhante ideia de sair com seus pertences o mais rápido possível. Além disso, havia dezenas de caminhões de mudança dificultando o trânsito. Pelo menos alguém iria lucrar com aquela tragédia astronômica.
            
       Havia um casal discutindo em um carro à minha direita. Eu pude ouvir o homem gritando: "NÃO VOU VOLTAR PARA BUSCAR PORCARIA NENHUMA". Pelo retrovisor, vi crianças chorando com bichinhos de pelúcia nas mãos. Também avistei garotas se maquiando, pessoas balançando a cabeça ao som de uma música, algumas espremendo espinhas e muitas outras buzinando. Pareceria um dia comum se todos não estivessem mais tristes enquanto faziam as mesmas bobagens de sempre.
           
        A língua de Steve, acompanhada de uma respiração frenética, não parava de mexer. Ele olhava para o lado de fora, esperando ansioso pela rajada de vento que retomaria assim que o veículo acelerasse. Pobre animal. Se ele soubesse que todas as marcações de território haviam sido em vão. Todos os seus rastros deixariam de existir assim como os meus.
           
        Havia uma mesa no centro da cidade onde escrevi, certa vez, com uma caneta permanente: "O homem precisa ser maior do que seu pênis - Machado de Assis". Alguns meses depois, um jornalista local disse a minha frase em uma reportagem, mas citou o grande escritor. Meus amigos até hoje riem disso e acredito que tenha sido o maior momento de minha vida ou, pelo menos, uma grande contribuição para a sociedade. Depois de hoje, a mesa desaparecerá assim como as minhas palavras. E a única prova de que vim ao mundo será apagada para sempre.
           
      Uma mulher se aproxima de meu carro e pergunta se o cachorro morde. Ela passa as mãos sobre o pelo de Steve e diz que os animais a deixam mais calma. Um meteoro irá cair e ela ainda se preocupa em explicar os seus motivos. Eu não julgaria se alguém resolvesse lamber o meu labrador. A mulher diz que acabou de quitar a casa. Pagou a última parcela do financiamento de 30 anos no último mês. Ela chora e pergunta sobre mim. Eu digo que vivia de aluguel. Ela diz: "que sorte!".
           
      Os carros voltam a andar e Steve se diverte mais uma vez. Atravesso a rodovia federal à procura de um hotel. Todos estão lotados de carros até a entrada e, por isso, nem me atrevo a conseguir uma vaga. Depois de vários quilômetros, encontro a primeira oportunidade: uma grande pensão que aparenta disponibilidade. Entrei segurando Steve por uma coleira e solicitei um quarto. A gerente disse que o estabelecimento não permitia animais. Eu implorei por uma exceção e ela negou. Eu argumentei que minha casa seria atingida por um meteoro e meu cachorro era tudo o que restava. Recebi uma chave de quarto, alguns jornais velhos e um abraço.
            
       Steve comeu a ração e bebeu a água num piscar de olhos. Logo deitou e adormeceu. Ele não se divertia assim há muito tempo. Pobre animal. Aquela situação de perigo era uma espécie de férias para ele. Mal sabia que só havia entrado naquele quarto por pura pena. O pior é que tinham pena de mim e não dele.
            
     Liguei a televisão e acompanhei uma homenagem sobre a minha cidade. Era uma espécie de documentário acompanhado por um relógio regressivo no canto da tela que indicava o tempo de vida restante. Narraram fatos históricos que eu não tinha a menor ideia. Contaram curiosidades que eu nunca ouvira falar. Informaram pontos turísticos completamente desconhecidos por mim. Em poucos minutos, a minha cidade tornou-se o lugar mais importante do mundo e, a sua perda, a maior tragédia da humanidade.

       Meus pais me ligaram e informei que estava em segurança. Alguns amigos mandaram mensagem e respondi: "Que meteoro? Acabei de acordar". Solicitei um jantar à recepção e assisti aos últimos resquícios de meu município comendo frango empanado com fritas. Era uma situação peculiar. A escola onde estudei não existia mais. A minha faculdade fora deletada do mundo. O prédio onde trabalho, destruído. O local onde dei o primeiro beijo, a rua em que aprendi a andar de bicicleta, a casa de meus pais e de minha avó. Todos os meus passos foram reduzidos a nada. "Do pó viemos e ao pó voltaremos".

       Olhei para Steve e ele não estava dormindo mais sobre a cama de jornais. Ele havia subido na pia da cozinha e lambia os restos de meu jantar. Aquele era o dia mais feliz de sua vida. 



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