Personagem Mr. Peanutbutter do desenho animado "BoJack Horseman" |
A primeira coisa a fazer seria verificar o seguro. Infelizmente, o meu contrato de aluguel não cobria
tragédias de origem espacial. A segunda medida foi arrumar as malas. De acordo com o noticiário, eu tinha 20
horas para fugir. Empacotei meus pertences com uma
velocidade assustadora. Levei minhas panelas, um saco de laranjas, um pacote de
arroz e uma lata de ração canina. Retirei todas as roupas do cabide e os tênis
da sapateira. Carreguei a TV de plasma e o computador. Consegui encher o
porta-malas e o banco de trás de meu carro. Na frente iam o meu cachorro e eu.
Steve era um labrador amarelo enorme
que ficou bastante feliz quando o coloquei no banco do passageiro. O pobre
animal imaginava um empolgante passeio. Ele estava certo. O problema era que
nós nunca iríamos voltar.
Enquanto atravessava a rua onde
morava, analisei cada pedra, buraco, árvore e irrelevante imperfeição. Eu queria memorizar aquela atmosfera impossível de ser captada por
qualquer câmera. A rua que ficava sombria nos dias de escritório e acolhedora
nos fins de semana. A rua em que imaginei morrer, mas que morreria antes mim.
Não demorou e eu compus a ponta de um
grande congestionamento. Todos tiveram a brilhante ideia de sair com seus
pertences o mais rápido possível. Além disso, havia dezenas de caminhões de
mudança dificultando o trânsito. Pelo menos alguém iria lucrar com aquela
tragédia astronômica.
Havia um casal discutindo em um
carro à minha direita. Eu pude ouvir o homem gritando: "NÃO VOU VOLTAR
PARA BUSCAR PORCARIA NENHUMA". Pelo retrovisor, vi crianças chorando com
bichinhos de pelúcia nas mãos. Também avistei garotas se maquiando, pessoas
balançando a cabeça ao som de uma música, algumas espremendo espinhas e muitas
outras buzinando. Pareceria um dia comum se todos não estivessem mais tristes
enquanto faziam as mesmas bobagens de sempre.
A língua de Steve, acompanhada de
uma respiração frenética, não parava de mexer. Ele olhava para o lado de fora,
esperando ansioso pela rajada de vento que retomaria assim que o veículo acelerasse. Pobre animal. Se ele soubesse que todas as marcações de
território haviam sido em vão. Todos os seus rastros deixariam de existir assim como os meus.
Havia uma mesa no centro da cidade
onde escrevi, certa vez, com uma caneta permanente: "O homem precisa ser
maior do que seu pênis - Machado de Assis". Alguns meses depois, um
jornalista local disse a minha frase em uma reportagem, mas citou o grande
escritor. Meus amigos até hoje riem disso e acredito que tenha sido o maior
momento de minha vida ou, pelo menos, uma grande contribuição para a sociedade. Depois de
hoje, a mesa desaparecerá assim como as minhas palavras. E a única prova de
que vim ao mundo será apagada para sempre.
Uma mulher se aproxima de meu carro
e pergunta se o cachorro morde. Ela passa as mãos sobre o pelo de Steve e diz
que os animais a deixam mais calma. Um meteoro irá cair e ela ainda se preocupa
em explicar os seus motivos. Eu não julgaria se alguém resolvesse lamber o meu
labrador. A mulher diz que acabou de quitar a casa. Pagou a última parcela do
financiamento de 30 anos no último mês. Ela chora e pergunta sobre mim. Eu digo
que vivia de aluguel. Ela diz: "que sorte!".
Os
carros voltam a andar e Steve se diverte mais uma vez. Atravesso a rodovia
federal à procura de um hotel. Todos estão lotados de carros até a entrada e,
por isso, nem me atrevo a conseguir uma vaga. Depois de vários quilômetros,
encontro a primeira oportunidade: uma grande pensão que aparenta
disponibilidade. Entrei segurando Steve por uma coleira e solicitei um quarto.
A gerente disse que o estabelecimento não permitia animais. Eu implorei por uma
exceção e ela negou. Eu argumentei que minha casa seria atingida por um meteoro
e meu cachorro era tudo o que restava. Recebi uma chave de quarto, alguns
jornais velhos e um abraço.
Steve comeu a ração e bebeu a água
num piscar de olhos. Logo deitou e adormeceu. Ele não se divertia assim há
muito tempo. Pobre animal. Aquela situação de perigo era uma espécie de férias
para ele. Mal sabia que só havia entrado naquele quarto por pura pena. O pior é
que tinham pena de mim e não dele.
Liguei a televisão e acompanhei uma
homenagem sobre a minha cidade. Era uma espécie de documentário acompanhado por
um relógio regressivo no canto da tela que indicava o tempo de vida restante. Narraram fatos históricos que eu não tinha a menor ideia. Contaram
curiosidades que eu nunca ouvira falar. Informaram pontos turísticos completamente
desconhecidos por mim. Em poucos minutos, a minha cidade tornou-se o lugar mais
importante do mundo e, a sua perda, a maior tragédia da humanidade.
Meus pais me ligaram e informei que
estava em segurança. Alguns amigos mandaram mensagem e respondi: "Que
meteoro? Acabei de acordar". Solicitei um jantar à recepção e assisti aos
últimos resquícios de meu município comendo frango empanado com fritas. Era uma
situação peculiar. A escola onde estudei não existia mais. A minha faculdade fora deletada do mundo. O prédio onde trabalho, destruído. O local onde dei o primeiro beijo, a rua em que aprendi a andar de bicicleta, a casa de meus pais e
de minha avó. Todos os meus passos foram reduzidos a nada. "Do pó viemos e
ao pó voltaremos".
Olhei para Steve e ele não estava
dormindo mais sobre a cama de jornais. Ele havia subido na pia da cozinha e
lambia os restos de meu jantar. Aquele era o dia mais feliz de sua vida.
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