quinta-feira, 16 de março de 2017

Aparente Seleção Natural


Personagem Darwin do desenho animado "O Incrível Mundo de Gumball". 

   O Projeto Seleção havia sido desenvolvido pelos cientistas do Governo Mundial. Apesar de inovador, era baseado nos clássicos estudos de Charles Darwin sobre a evolução das espécies. Girafas de pescoço longo, ursos brancos localizados no extremo ártico, mariposas com pigmentação melândrica pós revolução industrial. Todos eles possuíam algo em comum: uma vantagem em relação a seus competidores. Após concluir a Seleção Natural, os indivíduos menos adaptáveis eram extintos e ocorria uma nivelação correspondente a cada espécie. A vantagem, anteriormente encontrada, deixava de existir.
            
     A nova proposta consistia em aplicar uma seleção natural na humanidade, ou melhor dizendo, uma seleção artificial. O intuito era amenizar as desigualdades sociais e econômicas que assolavam o mundo. Após um longo debate, chegou-se a um consenso. Era necessário eliminar a principal característica discriminatória da raça humana: a feiura.
            
    Primeiramente foi estabelecido um padrão de beleza. Inúmeros voluntários classificaram diversas fotografias de homens e mulheres, pontuando-as de 0 a 10. A nota 10 correspondia a beleza suprema e a 0 aos casos perdidos. A partir da coleta de dados foi desenvolvido um scanner manual conhecido como Feiomêtro. Consistia em uma pistola que classificava a beleza apontando-se para um indivíduo. Se a leitura fosse menor do que 6, o aparelho emitiria um apito e indicaria uma esterilização (Vasectomia ou ligação de trompas). Dessa forma seria possível erradicar, aos poucos, o fenótipo indesejado.
            
     Muitas gerações passaram e os feios continuaram existindo. O Governo Mundial logo se deu conta de que os feios estavam evitando as cirurgias e proliferando cada vez mais. Para contornar a situação, foi criada a Patrulha da Feiura. O feio seria condenado à prisão perpétua se fosse abordado sem um certificado de esterilização. A feiura havia se tornado um caso de calamidade mundial.
            
  Diversas descendências depois e os feios continuavam firmes e fortes. Situações extremas necessitavam de medidas extremas e a prisão perpétua logo se converteu em pena de morte. Em seguida, foi aprovada a Lei dos Cinco Anos. Essa lei dizia basicamente o seguinte: se uma criança nascesse feia, ela teria cinco anos para abandonar tal comportamento, caso contrário seria excluída da sociedade.
            
    A medida funcionou e, após 90 anos, os feios haviam desaparecido. Alguns séculos depois, a feiúra tornou-se uma lenda. Os feiosos enquadraram a classe de monstros, sendo equiparados aos vampiros, múmias e fantasmas. Ninguém acreditava que esses excêntricos seres haviam integrado a sociedade no passado.
           
   A extinção permitiu que as desigualdades diminuíssem drasticamente. No entanto, os muitos bonitos ainda sobressaiam-se e obtinham privilégios. A solução foi abolir as carreiras de modelos, os concursos de beleza, as revistas de moda e todos os derivados imagináveis. A decisão foi um sucesso; com o tempo, os muito bonitos não possuíam mais vantagens e começaram a alegar discriminação.
           
   Eu nasci nesse período, onde a utopia reinava e apenas o esforço próprio era responsável por determinar o sucesso. Indicações, nepotismo e amor à primeira vista eram termos em desuso, pois todos tinham as mesmas oportunidades. Mesmo assim, minha mãe ficou bastante preocupada com o meu futuro. Quando completei cinco anos, ela perdeu a esperança e nunca mais me deixou sair de casa. Eu havia nascido com a pior anomalia imaginável. Eu era feio.
           
    Orelhas de abano, olhos desalinhados, nariz arrebitado, lábios estreitos, queixo pontudo. Eu possuía praticamente todos os sintomas da terrível doença. Sendo assim, permaneci escondido em meu lar por toda a minha vida.
            
       Por conviver diariamente com a enfermidade, tornei-me um especialista no assunto. Aprendi, por exemplo, que cobrir os espelhos de casa com uma lona preta diminuía consideravelmente a depressão. Também descobri que minha situação era insolúvel, pois não havia artigos científicos referentes à feiura de nascença. Os únicos tratamentos disponíveis eram contra a obesidade.
           
      A reclusão me permitiu estudar com afinco, durante décadas, todo tipo de assunto. A literatura me recompensou com uma visão crítica a respeito da sociedade. Era um absurdo determinar quem era digno de viver exclusivamente pela aparência. Eu acreditava que toda criatura era um ser único e excepcional.
            
    Deixei o meu lar dispostos a encarar as consequências impostas pelo mundo preconceituoso. Minha mãe tentou impedir, mas fui relutante. Eu precisava lutar pelas minhas convicções. Era melhor morrer feio do que viver de joelhos.
            
      Depois de convencer as autoridades de que eu não estava usando uma fantasia, fui submetido a um Feiômetro. O aparelho, retirado de um museu, apitou marcando 0,47. Sem demora, senti as algemas pressionando os meus pulsos e aguardei pelo julgamento na prisão.
       
       Quando finalmente adentrei o tribunal, vislumbrei o júri mais bonito do planeta. Resolvi encarnar o advogado e expus toda a hipocrisia da humanidade. Defendi o meu direito à liberdade, à igualdade, à vida. Argumentei que a beleza era um conceito relativo e não uma ciência exata. Perguntei o que a civilização seria hoje se Einstein, Da Vinci, Newton ou Darwin tivessem sido ignorados simplesmente por serem feios.
            
       Minha retórica surtiu efeito e saí vitorioso da audiência. Tornei-me uma celebridade e permitiram até que eu tivesse alguns filhos. A única condição era permanecer com minha família em uma casa com enormes janelas de vidros. Pela vitrine, eu acenava para os visitantes que num primeiro momento assustavam-se com a minha aparência, mas, logo depois, sorriam e acenavam de volta. E assim provei que todos tinham o seu lugar na sociedade.

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