Cena do Filme "As Vantagens de Ser Invisível" |
A
vida comum prosseguia e Jorge foi aprovado no exame de direção. Pouco depois, recebeu
a carteira de habilitação pelo correio e visitou a antiga residência. Ao
terminar o saudoso queijo-quente, retirou o carro de sua mãe da garagem e partiu,
trocando as marchas com muita dificuldade.
Ele buzinou na entrada do atual apartamento por vários minutos. Depois que todas as pessoas da redondeza foram incomodadas, Miguel levantou-se e espiou pela janela, avistando o amigo dentro do veículo.
Miguel colocou uma camisa e calçou um tênis. Desceu as escadas, abriu o
portão e alcançou a rua.
— O
que aconteceu, Jorge?
—
Minha carteira chegou! Vamos comemorar!
O veículo passava por inúmeros buracos, pois
recusava os desvios que adentrassem a um centímetro pela contra - mão. As quatro rodas
também freavam bruscamente perante qualquer indício de placa "PARE"
ou semáforo amarelo. Daqui a uns anos, Jorge insultará os carros que fizerem
tal atrocidade.
Os
garotos confabulam e decidem ir ao cinema. Jorge mal acredita quando Miguel
sugere convidarem Júlia. Nos últimos tempos, o recente motorista precisava implorar ao
colega de apartamento para deixar a zona de conforto, o que diria sair com mais uma
pessoa. Era um milagre.
É agosto,
época de greve por todas as faculdades públicas. Júlia não tem mais nada para
fazer, garante. O veículo encosta em frente à república e arranha a calota no
meio fio. A garota entra pela porta de trás.
— Oi
meninos! Parabéns, Jorge!
Júlia
abraça o mais novo habilitado junto com o banco do motorista. Depois repete o gesto com
Miguel, mesmo este não tendo conquistado nada.
O
veículo é deixado a um quarteirão do shopping. Além de economizar dinheiro,
Jorge evitava as curvas traiçoeiras do estacionamento. Após uma leve caminhada, os
três amigos incorporam à fila do cinema.
A
garota analisou os filmes disponíveis e fez uma sugestão. Miguel não gostava de
julgar um livro pela capa ou um filme pelo cartaz, mas naquele caso era
impossível. A escolha de Júlia foi a pior possível. Até o nome condenava o pobre
longa - metragem. Era uma daquelas produções que faziam as pessoas saírem do
cinema pensando: "Não parece ser tão difícil produzir um filme." Com
certeza, essa obra inspiraria muitas catástrofes pelos séculos seguintes. Para se ter uma noção, caso Miguel estivesse em uma ilha deserta por 10 anos e caísse do céu uma televisão,
um aparelho de DVD, o filme escolhido por Júlia e, por algum milagre, uma
tomada com energia elétrica surgisse no tronco de um coqueiro, ele não
assistiria. Essa era a gravidade da situação.
Miguel
não queria agir como um ditador cultural ou magoar a amiga. Por
essas razões, utilizou uma artimanha sutil:
— Hoje é o dia do Jorge! Acho que ele deveria
escolher.
Não
era difícil ter um bom senso melhor que o anterior, mas Jorge poderia apoiar a
opinião da amiga. A decisão majoritária deixaria Miguel sem saída
por, pelo menos, 90 minutos. Apesar do risco, Jorge escolheu um característico filme
de super-herói e o companheiro comemorou internamente. Seria possível sobreviver.
Entraram
na sala escura e assentaram nos respectivos lugares. Jorge ficou no meio,
obtendo acesso fácil a seus dois amigos e distribuindo a pipoca. Enquanto
o filme desdobrava, Miguel interpretou os heróis como nunca antes. Aquele homem
mascarado, como a maioria dos paladinos, obtinha respeito e admiração
explorando as aflições da humanidade. Era triste: para um herói se destacar, alguém
precisava sofrer. E o jovem podia imaginar os heróis torcendo por uma
catástrofe ou implorando por um arqui-inimigo. No final das contas, eles não passavam de sujos aproveitadores.
Mesmo
com o fim do filme, Jorge insistiu para ficarem após os créditos. O motorista pressentia uma cena escondida, mas nada apareceu. As luzes acenderam e a
sujeira da sala acabou sendo a grande revelação.
A
fila agora apontava para um Fast Food e uma discussão nasceu durante a espera.
— Qual
superpoder vocês escolheriam se pudessem? — perguntou Jorge
—
Queria o poder de criar lâmpadas mágicas. — disse Júlia — Eu sempre poderia
esfregar e pedir mais 3 superpoderes.
— Bem
esperta! E você Miguel?
— Eu
viajaria no tempo e evitaria que os desastres acontecessem.
—
Isso nunca daria certo. — afirmou Jorge.
— Por
quê?
—
Como você evitaria um furacão ou um tsunami?
— Não
evitaria, mas informaria com antecedência. Seria possível salvar a todos dessa
maneira.
—
Para funcionar você precisaria ter muita influência.
— Se
eu conseguisse viajar no tempo, seria a pessoa mais influente do mundo.
—
Parem de brigar e peguem os sanduíches. — ordenou Júlia, num tom de brincadeira.
Os
amigos ocuparam uma mesa circular e deram a primeira mordida. Frango e maionese
para Júlia. Bacon e gorgonzola para Jorge. Bife e cheddar para Miguel. Ninguém
perguntou, mas Jorge respondeu assim mesmo:
— Eu queria
ser invisível.
Os
amigos ficaram calados. Nenhum dos dois lembrava-se do contexto.
—
Esse seria o meu superpoder. — insistiu Jorge.
—
Achei que você estivesse passando por alguma crise. — disse Miguel
Afloraram
risadas e Jorge respondeu novamente à ausência de perguntas:
— Eu
não precisaria de uniforme e fingiria ser uma assombração para ensinar lições
valiosas às pessoas.
— Que
tipo de lições? — indagou Júlia.
— Por
exemplo... uma mãe fala com o filho para sair de perto da TV para não estragar as vistas. Caso a criança desobedecesse, eu ficaria invisível e
enfiaria o dedo nos olhos dela.
—
Nossa! Que lição valiosa. — disse Júlia.
— Eu
estava certo, você está realmente passando por uma crise. — complementou Miguel.
Os
amigos ainda se divertiam ao atravessarem as portas com sensores de
movimento e deixarem o centro comercial para trás. Riam de tudo e de todos. O
grupo formava uma entidade e as pessoas externas não eram levadas em consideração.
Os outros eram apenas coadjuvantes. Enfeites na prateleira. Plano de fundo dos
verdadeiros heróis.
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